sexta-feira, 13 de março de 2015

Luto e fenomenologia: uma proposta compreensiva

 

4. Segunda Redução: A Intersubjetividade e a Imposição de uma Mudança no Modo de Apresentação do Tu

Como assinalamos na introdução descrevemos o luto como uma mudança abrupta nos modos de apresentação do tu. Ao falarmos do luto como uma mudança abrupta em uma relação eu-tu, o nosso próximo passo nos leva invariavelmente a um dos problemas centrais da fenomenologia: a questão do outro e da revelação da subjetividade como intersubjetividade. O outro aqui se apresenta como existencialmente dado e não como ciência. O outro não é um ob-jectum do meu conhecimento, mas sujeito coexistente em minha experiência de ser-no-mundo, calcado nesse "fundo", nessa situação comum que é nossa intercorporeidade. É uma evidência irrefutável, não uma pressuposição. Como nos ensina Merleau-Ponty (2002, p. 169): "o mistério de um outro não é senão o mistério de mim mesmo".

Conhecer o outro não significa reconhecer sua existência ou agir conforme sua presença inalienável em meu campo existencial, em meu mundo-da-vida. O outro é parte do campo da subjetividade e, portanto, se apresenta como campo de existência e não como um objeto para o conhecimento de um "eu". Não haveria um "outro" se não estivéssemos expostos a um mesmo mundo, se seus gestos e sua expressão não me remetessem à proliferação de sentidos em meu campo existencial, a um reconhecimento de meu ser-no-mundo (Merleau-Ponty, 2002). Sendo o outro co-presença, sua desaparição enquanto mortal produz uma modificação do meu campo existencial, do meu mundo vivido, exigindo-me novas formas de ser-no-mundo. É este o campo no qual experienciamos o luto: um campo de exigência de um novo sentido, de uma nova forma de ser-no-mundo, de ressignificação da relação vivida com o ente perdido. Ou ainda, podemos dizer que "este conjunto de vivências que a pessoa nos apresenta faz parte de uma totalidade que pode ser nomeada como seu mundo-da-vida, expressão que traduz o Lebenswelt" (Queiroz e Mahfoud, 2012, p. 42).

A supressão abrupta da presença do tu em um modo específico de mostrar-se na relação é o elemento crucial e disparador da experiência do luto. Não que o "tu" desapareça, antes, desaparece uma maneira de ser "eu" diante do "tu", pois o outro não é uma ciência que tenho dele, mas como dissemos anteriormente, é uma experiência de abertura do mundo. Explico-me: o "tu" não estará mais presente em sua corporeidade, com sua voz, seu toque, seu cheiro, sua materialidade, entretanto não cessa de se apresentar como parte da existência do enlutado: lembranças, fotos, desejos, vidas e momentos partilhados fazem com que o "tu" não cesse totalmente de se apresentar, entretanto, não partilhará mais do mundo como um "outro eu mesmo". A existência será doravante uma presença que se anuncia na ausência. O que falta ao enlutado, mais do que o "tu", é um modo usual, habitual de ser "eu", um modo de ser-no-mundo, uma infinidade de significações próprias e inerentes a um campo relacional. Doravante, não haverá mais copresença para que certa forma de partilhar o mundo e, portanto, de ser no e com o mundo se apresente em meu campo de coexistência. Se, afirmarmos com Merleau-Ponty (2002), que "o outro se insira sempre na junção do mundo e de nós mesmos", constatamos que o outro se apresenta como uma realidade antropológica para o "eu sou" e não para o "eu penso". Nessa forma de interpenetração homem-mundo, tal interpenetração se abala na experiência da morte do outro e em seu luto decorrente.

O morto será uma presença-ausente no mundo do enlutado, como aquele amigo que não virá mais ao nosso encontro e que se nos apresenta quando olhamos a garrafa de vinho separada especialmente para com ele partilharmos (ou que com ele fora outrora partilhada). Todavia, em nosso exemplo, nosso amigo não poderá mais pela sua própria ação e existência exercer qualquer mudança em nossas vidas, posto que morto está. Essa forma de convivência com o morto pode por vezes ser entendida como uma resistência de esquecimento dos mortos, como se eles continuassem a partilhar desse mundo (Despret, 2011). E de fato continuam coexistentes no mundo vivido do enlutado, mas de outra forma, ainda como campo de coexistência, porém não mais como intercorporeidade, indiferentemente da significação cultural que se atribua à morte e ao morrer. Todos os sentidos partilhados em uma vivência eu-tu entre o morto e o enlutado, continuam a "falar", entretanto, são desconexos e exigem serem vividos de uma nova forma, ou mesmo com novas significações. Enquanto as novas formas de sentido e os rituais que permitirão ou não essa passagem são estruturados culturalmente, a mudança é intrínseca à coexistência, ao fato de que nossa subjetividade revela-se apenas como intersubjetividade, ou "suja de mundo", como descrito por Merleau-Ponty.

A relação eu-tu é sempre reveladora não apenas do outro, mas também da transcendência por meio do "entre". É reveladora de um universo de experiências e de uma forma própria de ser um "eu". Cada relação é singular e nos permite ser de particular forma, apesar de não pré-determinada. Essa propriedade que se revela em relação é, então, perdida, exigindo-nos uma variação das habituais formas de ser-no-mundo. Perder um "tu" com quem nos relacionamos é, portanto, uma forma de perder um espaço expressivo de si mesmo. Uma abertura ao mundo e do mundo desaparece, assim como um universo próprio de significações e vivências, um modo de ser "eu" que é específico daquela relação, particular e única.

O outro é sempre uma copresença. O outro não cessa de se anunciar, todavia os modos de ser que se apresentam para o enlutado se restringem a poucas possibilidades de expressão, mais a lembranças do que efetivamente a presenças, são expressões de um ausente, uma vez que nossa tese comum, a corporeidade, é desfeita com o acontecimento da morte. O mútuo engajamento tácito eu-tu, torna-se explícito assim como em uma revolução, como afirma Merleau-Ponty (1994). É uma dor que não tem nome e que não pode ser descrita objetivamente, ou como diríamos fenomenologicamente, é a explicitação de uma coexistência irrecusável e do "sabor mortal" da existência (Merleau-Ponty, 1994).

Nota-se que em nossa perspectiva o luto é um evento que se torna parte da vida do sujeito de maneira única, não é resolúvel ou passível de superação, tal como difundida pela psicanálise, posto que é uma ruptura de um mundo vivido impossível de se reapresentar. Ele consiste sim em um processo normal e esperado de transformação da relação com a pessoa perdida, tarefa que permite sua ressignificação exigida. Do ponto de vista fenomenológico a ressignificação exigida é, portanto, da relação eu-tu e não do luto. Ou seja, o luto não termina com uma "resolução", com a volta à vida que o sujeito vivia antes da perda, mas sim com a incorporação deste evento na vida do enlutado, de tal modo que possa seguir a vida adiante com uma conexão contínua, porém nova, com o ente perdido.

 

Considerações Finais: Diante do Luto

A literatura aponta que a morte de um ente querido e o luto são momentos de reflexão sobre a própria finitude permitindo novos modos de enfrentar o próprio existir (Santos & Sales, 2011). Existencialmente vimos que o luto constitui-se como a ausência da co-corporeidade do tu na relação eu-tu, o que não significa um esvaziamento do mundo, mas uma apresentação de um novo mundo, de uma nova forma de presença do outro, exigindo um novo sentido: "A morte de alguém amado nos aliena do mundo e do senso de self que se mantém na vida cotidiana no mundo com os outros. Ele por vezes "nos individualiza" jogando-nos em um mundo totalmente desprovido de sentido e âncoras" (Sopcak, 2010, p. 90). A morte do outro não é a experiência de minha própria morte, entretanto, me revela o sentido ontológico de minha morte além da própria "desaparição" do outro, de sua desaparição do meu campo de possibilidades, da revelação de sua ausência e de nossa finitude (Sciacca, 2001).

Tomando a intersubjetividade como elemento fundamental da compreensão da vivência do luto tempos por implicação que a "superação" da perda é impossível. Há que se levar em conta que tomar a existência como um campo de coexistência rompe com a ideia de uma relação entre sujeito e objeto, tal como apresentada na psicanálise, por exemplo. Não há mais a possibilidade de substituição do objeto perdido, pois essa forma irrefletida pela qual sou revelado em-relação se mostra como fenômeno próprio da relação eu-tu. Não há substituição possível às formas de significação que se apresentam nesse universo perdido com a morte de um ente querido. Sendo revelada intersubjetivamente, compreende-se que toda e qualquer mudança subjetiva, incluindo-se o luto, se apresenta sempre como uma nova abertura do mundo, um novo entrelaçamento que se anuncia, agora, porém sem intercorporeidade, ou ainda, entende-se que "toda ausência é apenas o avesso de uma presença, todo silêncio é apenas uma modalidade do ser sonoro" (Merleau-Ponty, 1994, p. 488). Do ponto de vista fenomenológico-existencial não há resolução ou substituição possível, como defende a psicologia clássica, mas possibilidades de reconfiguração de um campo de coexistência, do mundo vivido, a partir dessa ausência-presente do outro, do "tu" em "mim". A tarefa então seria a de ressignificação da relação eu-tu e não uma superação do luto.

Cada fenômeno em seus modos de aparição implica em um sistema de referências que contém todas as formas de apresentação e que permitem, por um sistema de aparências ou perfis, a aparição da vivência atual (Geniusas, 2010). Vimos como fenomenologicamente pode ser descrita a vivência do luto, a saber, por meio da articulação de três propriedades essenciais que se apresentam no mundo-da-vida: 1) As inéditas exigências de sentido e de ser-no-mundo desde o momento em que as formas de apresentação do outro na relação se modificam com sua supressão; 2) As especificidades da relação e, 3) Seu horizonte histórico de apresentação.

Por fim, concluímos que a exigência da elaboração rápida e imediata vivida na atualidade de nossa sociedade pode ser por uma perspectiva fenomenológica substituída pela compreensão do outro como abertura de si. A vivência da perda e a consideração da abertura ao horizonte da finitude que se apresentam neste momento são fundamentais para a articulação de novas formas de sentido do outro e de si mesmo no horizonte existencial do enlutado. Enlutar-se é no horizonte do ser-para-morte projetar-se como ser-no-mundo.

Luto e fenomenologia: uma proposta compreensiva

3. Primeira Redução: Significados Culturais e Sentidos Familiares sobre a Morte e o Luto - o Horizonte Histórico

Se quisermos nos indagar sobre os fenômenos humanos tal qual se apresentam para nós é necessário que façamos reduções tais que nos permitam recuperar o próprio fenômeno em questão a tal ponto que a única coisa que não podemos perder de vista ou reduzir, é a própria experiência do fenômeno, como ele se apresenta. Os fenômenos humanos estão sempre colocados em um panorama histórico e cultural, estão sempre "sujos de mundo", portanto, é preciso perguntar-se: de que mundo falamos? De que história? E para nós: de que morte e de que luto? É possível afirmar que independentemente da cultura dá-se uma mesma experiência de luto? Como a indagação fenomenológica pode nos ajudar? Estaríamos falando da mesma morte entre os índios sul-americanos (quais?) e um Europeu no século XIX ou um chinês do século XXI? O que nos leva a pensar o horizonte quando adotamos uma análise reflexiva fenomenológica?

Assim como o tema da alteridade e o da vivência do sentido subjetivo, o horizonte se constitui inegavelmente como tema fundamental para a configuração do sentido. Sendo preocupação central da fenomenologia, o sentido deve ser, portanto, compreendido como um dos pontos de articulação de todos estes elementos. Segundo Husserl (1954/2008, p. 264):

Sou, facticamente, numa presença co-humana e num horizonte aberto de humanidade, sei-me facticamente num contexto generativo, numa corrente de unidade, de uma historicidade na qual este presente é, da humanidade e do mundo que lhe é consciente, o presente histórico de um passado histórico e de um futuro histórico.


O horizonte, no sentido fenomenológico, não é apenas a referência para os fenômenos em seus modos de apresentação (aparições) atuais, como também se refere a outros modos potenciais do aparecer do fenômeno (Geniusas, 2010). O horizonte é, portanto, "o que limita e determina cada e todo fenômeno", é relativo a nossa situação corrente e se apresenta como versátil em seus limites (Geniusas, 2010, p. 84). O horizonte histórico nos permite vislumbrar os contextos de apresentação nos quais são possíveis as articulações de sentido na presentação do fenômeno e não como elemento que define o fenômeno per se. É "aquilo que se deve desde o início ter em vista como tema psicológico" (Husserl, 1954/2008, p. 264).

Como podemos então circunscrever nosso tema em seu horizonte histórico? Qual horizonte se apresenta hoje no que diz respeito à morte e ao luto, ao reduzirmos as singularidades das relações? A literatura antropológica já há muito relata as diferentes formas que pelas quais sociedades humanas realizam seus ritos fúnebres e certos modos de aparição do fenômeno do luto (Ribeiro, 2002; Kouri, 2010; DaMatta, 2011). Segundo Durant (1995) os primeiros ritos humanos surgem diante da morte e do morrer. Tais ritos cumprem o relevante papel de restauração de uma ordem que foi abalada pela morte, com suas dores, temores e perigos. Do ponto de vista antropológico a morte física não é suficiente para consumar a própria morte. Do ponto de vista psicológico também não o é. E tampouco o é existencialmente.

Em uma completa e aprofundada revisão sobre o tema, Ribeiro (2002) afirma que o paradigma antropológico de Hertz é de extrema relevância para a compreensão da morte e do luto nas mais diferentes culturas, até os dias atuais. Segundo este paradigma, independente da cultura, os ritos fúnebres envolveriam três aspectos: oferecer ao corpo ou restos mortais um lugar, ajudar a alma a inserir-se na morada dos mortos e liberar os vivos do luto a que estavam presos. A ruptura das relações e das atividades socialmente constituídas pode então ser reestabelecida com a liberação do luto. Todavia, cada sociedade vivencia tais ritos de formas diferentes, com sentidos diferentes. Entretanto, paradoxalmente diante de um mesmo fato: o fato da morte e da separação, com a imposição da quebra de vínculos e de uma demanda de significação diante da nova configuração relacional (eu-tu, seja no âmbito familiar ou comunitário). Segundo Kouri (2010), a sociedade brasileira vive uma ambivalência com relação à morte e ao luto, vivendo entre a subjetivação das emoções, a necessidade de enfrentamento da morte e da perda e a imposição cultural da discrição sobre as emoções.

Historicamente apresentaram-se na cultura ocidental diferentes formas de compreender e lidar com a morte. Segundo Ariès (2003) no ocidente vivenciou-se duas concepções distintas de morte, a saber, a Morte Domada e a Morte Interdita que por seu turno, refletem em formas também distintas de compreensão do luto.

Na experiência da Morte Domada houve a predominância de um sentimento de familiaridade com a morte. Esta não se relacionava a medo ou desespero, mas era entendida como um processo natural onde o moribundo não só estava consciente da proximidade de sua morte, como era protagonista na organização desse processo (Ariès, 2003). De acordo com o autor, os doentes sabiam quando morreriam, pois por um lado, não estavam sub-metidos aos procedimentos hospitalares que não permitem clareza aos leigos sobre o processo de adoecimento e, por outro, com o conhecimento precário das ciências médicas tinha-se algum conhecimento cotidiano sobre determinados processos mórbidos. O doente, então, ao pressentir uma doença incurável, chamava seus parentes e amigos e cumpria o "ritual de despedida": pedia perdão por suas culpas, legava seus bens e esperava a morte chegar. Não havia um caráter dramático ou gestos de emoção excessivos. Essa atitude na qual se compreendia a morte como fenômeno próximo, insensibilizado e familiar é oposta à postura adotada na atualidade, onde simplesmente mencionar a morte implica tão fortemente na ideia de medo e desespero que evitamos mesmo pronunciar seu nome (Ariès, 2003).

No século XVIII, a morte toma um sentido dramático, ganhando a conotação de evento que rouba o homem de seu cotidiano e sua família. Nesse momento o luto adquire novos contornos: perde seu caráter natural e se torna "exagerado", onde o personagem principal desse drama passa a ser a família em detrimento do moribundo. O temor não é o da própria morte, mas o da perda do outro (Ariès, 2003), abre-se um novo horizonte de possibilidades de apreensão da morte enquanto fenômeno.

Desde a segunda metade do século XIX, a morte se transformou em tabu: os parentes do moribundo passaram a poupá-lo de sua própria morte escondendo a gravidade do seu estado. Com os avanços da medicina no século XX testemunhamos a mudança da representação social da morte: já não se morre em casa a seu tempo e com os seus, mas no hospital e em grande parte das vezes, sozinho. Os progressos da ciência permitem prolongar a vida, os pacientes podem ser condenados a meses ou anos de vida vegetativa ligados a tubos e aparelhos, ou seja, fora extirpado do moribundo não só o saber sobre sua própria morte, como também, seu direito a ela - é a morte interdita que se apresenta (Ariès, 2003).

Contemporaneamente, a regra implícita na morte e no morrer é a da neutralização dos ritos funerários e a ocultação de tudo que diga respeito à morte, o que implica diretamente na forma que se concebe e se vivencia o luto, cada vez mais percebido como vivência patológica, pois proibida, e não mais como um período natural e passageiro. A hipermedicalização do luto em nossa sociedade é um exemplo de tal patologização e que nos exige repensar o papel dos rituais no processo de luto. Kouri (2010) já nos mostra como o luto tem sido circunscrito na cultura da discrição das emoções, típica da atual sociedade brasileira. Expressar-se emocionalmente pode ser sinal de falta de controle das emoções e, portanto um ato tido como desapropriado ou de desespero. A supressão dos ritos na sociedade atual pode, portanto, dificultar a vivência da perda de sentido do mundo-da-vida e sua consequente ressignificação.

Outro elemento socialmente relevante além da relação que se estabelece entre a cultura e a morte como um fato generalizado da condição humana são as concepções sobre os diferentes tipos de morte. As concepções variadas sobre suicídio, adoecimento crônico, mortes violentas, mortes infantis ou em idade avançada são também especificidades que precisam ser mais bem estudadas para a compreensão do impacto da morte em um grupo e seu consequente campo de possibilidades no horizonte da vivência do luto.

Por fim, destacamos que do ponto de vista fenomenológico o que é relevante reconhecer no que diz respeito ao horizonte é o seu lugar como campo de articulação de sentido e de validação das organizações de sentido e das vivências (Geniusas, 2010). O horizonte não se constitui, portanto, como uma influência "de fora para dentro", mas se apresenta como condição de presentação mesma dos fenômenos, enquanto possibilidade e validade e, portanto deve ser continuamente revelado. As possibilidades de presentação de um fenômeno se referem às articulações de sentido e a implicações de outros aspectos, ou perfis, não revelados no perfil ora apresentado, mas que são parte da experiência que se apresenta subjetivamente. É assim que entendemos a contribuição de uma compreensão antropológica da cultura ao estudo do luto: como um conhecimento que nos expõe possíveis perfis de apresentação, estruturação e organização dos contextos de articulação de sentidos e não como seu determinante, o que nos leva a nossa segunda redução na busca de uma aproximação ao fenômeno do luto: como o mundo de todos nós se apresenta na ausência do tu que é o próprio cerne da experiência do luto? Ao retirarmos todas as conjunturas da atualidade como podemos descobrir a própria experiência subjetiva que reside na separação, na ruptura ou, pelo menos, em uma modificação da intencionalidade do mundo na ausência de um tu fundamentalmente significativo?

Luto e fenomenologia: uma proposta compreensiva

2. A Especificidade de Cada Mundo: Particularidades das Relações Eu-Tu e o Luto

Todas as relações significativas estão sujeitas ao luto. Somos parte uns dos outros e nosso sentido existencial está atrelado ao sentido do que somos a alguém e do que podemos ser na relação com alguém. Certamente há amigos para quem nos sentimos mais significativos do que para alguns parentes, ou ainda, há meros conhecidos que nos permitem conhecermo-nos mais que os íntimos.

O impacto da morte de outrem e o consequente luto não se definem por rótulos interacionais, entretanto o luto é diferentemente vivenciado a depender da qualidade da relação que mantemos ou mantínhamos com quem perdemos. Para um adolescente pode ser muito mais impactante perder um colega de escola em um acidente ou por uma doença fatal do que perder seu avô ou avó. Na velhice, o luto dos amigos que se vão um a um é uma experiência que remete incessantemente à própria condição de envelhecimento e a uma vivência exacerbada de solidão, intensificando os processos e as vivências do luto (Elias, 2001). O luto de um amante com quem se vivia em segredo pode ser cruel pela impossibilidade expressa da manifestação de sentimentos em público. Tais elementos tão específicos de cada relação, sempre se articulam e só emergem conforme as possibilidades dadas pelo horizonte histórico, em articulação com o mundo que habitamos, nosso singular mundo-da-vida.

A investigação fenomenológica visa compreender os invariantes (fenômenos) que se apresentam como intencionais e não enquanto individuais (Giorgi & Sousa, 2010). Entretanto, quando lidamos com o sofrimento no cotidiano do trabalho do psicólogo é necessário que se articule os aspectos gerais e invariantes com os aspectos específicos da vivência dos sujeitos empíricos em seus sistemas de referências, a saber, os horizontes histórico e subjetivo. Portanto, não se deve ignorar que a experiência vivida é sempre implicada pelo horizonte, que se constitui como um sistema de referência subjetiva, onde o sentido da aparição do fenômeno é nele e por meio dele articulado (Geniusas, 2010). Ocupar-se da singularidade como modo de apresentação do universal é ter a preocupação específica do campo psicológico na compreensão e acolhimento do sofrimento em sua empiria mundana, cotidiana.

Apesar de seu contexto psicológico que pode ser analisável e classificável, fenomenologicamente, a especificidade da relação só pode ser compreendida no contexto da vivência e do sentido, onde o esforço metodológico se dirige à busca da compreensão das vivências enquanto fenômenos. As descrições apresentadas diante de cada relação de onde emergem os sentidos da perda e do luto é o tema por excelência das investigações no campo da psicologia fenomenológica do luto, pela natureza do seu método e suas possibilidades de descrições de vivências (Van Manen, 1990; Giorgi, 2009; Mortari & Tarozzi).

Os estudos sobre vivências fenomenológicas do luto são cada vez mais comuns como podemos constatar, por exemplo, no levantamento sobre estudos que investigam a vivência do luto no seio familiar e fenomenologia (Ambrósio & Santos, 2011; Barbosa, Melchiori & Neme, 2011; Santos & Sales, 2011), estudos sobre viuvez (Turatti, 2012) e sobre a perda do filho (Alarcão, Carvalho & Pelloso, 2008), estudos sobre ritos culturais e a experiência do luto (Sopcak, 2010).

Tanto do ponto de vista antropológico quanto psicológico o luto é invariavelmente descrito como uma vivência que tem sentido dentro de um grupo (Bromberg, 1996; Ribeiro, 2002). Para pensar as especificidades do luto e seus mundos tomamos aqui como exemplo o grupo familiar, um dos grupos culturais mais "duros", pela especificidade e delineamento dos papéis que apresenta, apesar das imensas variações encontradas nas vivências de cada papel e de cada família na contemporaneidade. Ressaltamos que os laços grupais familiares que consideraremos como relevantes para a compreensão do luto são formados independentemente de laços consanguíneos ou de gênero. Apesar de as relações familiares serem perpassadas pelo contexto sociocultural, cada família se arranjará e se estruturará de um modo particular e único.

O grupo familiar é tido como um dos mais relevantes em nossa cultura, com papéis, funções e relações bem delimitadas e estabelecidas, mesmo que em constante mudança. Entretanto, devido ao campo das singularidades há, certamente, muitas formas de ser mãe ou irmão. Tais formas podem ser pensadas, mas não previstas, pois cada família tem um sentido e uma configuração para os papéis que são desempenhados pelos diferentes membros do grupo e a isso o psicólogo que atua na área deve estar atento. As descrições fenomenológicas só alcançarão a compreensão das especificidades dos contextos e seus diversos modos de relação familiar.

Na literatura, há dois aspectos relevantes apontados para o estudo do luto no contexto da família: o ciclo de vida (Brown, 1995) e a reorganização do sistema familiar (Bromberg, 1996). Diferentes situações vêm à tona com a morte de um de seus membros. A exigência de reorganização frente ao novo campo relacional se impõe, com necessidades e rearranjos próprios de cada sistema. O luto materno, por exemplo, é um dos mais estudados pela literatura e um dos mais significativos em nossa cultura. A história e a antropologia já nos demonstram as diferenças entre os lutos vivenciados nos diferentes contextos relacionais. Entre os índios Carajás, por exemplo, que cortam seus cabelos no período de luto, as mães são aquelas que os cortam mais curtos (Azoubel Neto, 1991). No Brasil, quando ainda se guardava um luto aparente, as mães eram as únicas que usavam luto fechado para o resto da vida, diferente das viúvas e dos que perdiam seus pais. Já na Roma Antiga o luto materno aparece com destaque: Sêneca (4a.c.-65d.c.) em uma de suas "consolações"1, já escrevera Consolação à Márcia (Caroço, 2011) com descrições de mães romanas assustadoramente fiéis às vivências das mães brasileiras contemporâneas. No contexto das relações familiares uma das questões colocadas pela psicologia é, por exemplo, sobre a função materna. Como a mãe que perde um filho se vê agora, sem seu filho? É uma mulher que possui outras funções na família e na sociedade? Quais as funções que lhe são agora exigidas? Como se relaciona com os outros filhos? Quais são os sentimentos emergentes nesse processo (culpa, vazio, medo, revolta ou outros)?

Apesar desses aspectos que são mais evidentemente partilhados e que merecem estudos mais aprofundados, há que se avaliar em cada caso, no contexto da atuação clínica e de uma análise psicológica fenomenológica, as particularidades de cada uma das relações rompidas. Há mães que perdem seus filhos por acidente, por suicídio, adoecimento agudo ou crônico e que as colocam em posições diversas diante da vivência do luto, impossibilitando a generalização desta experiência. Há mães que acreditam não terem cumprido com seus papéis adequadamente e se culpam. Há aquelas que não desempenham outros papéis em seus grupos e se mantém cuidando do filho já falecido por meio de variados modos: lutas judiciais, sentimentos de vingança ou justiça (seja com os homens ou com Deus), caridade, homenagens aos entes queridos.

A viuvez é também tida como um processo longo e doloroso. Bromberg (1996) aponta que o momento do ciclo de vida familiar é de fundamental importância para a compreensão da vivência do luto. Na viuvez, pergunta-se: foi um casal jovem que foi desfeito ou um casal já com os filhos criados? Obviamente tais questões são relevantes, entretanto, a comparação é impossível uma vez que um casal aposentado poderia estar justamente vivendo um momento de "segunda lua de mel" ou de concretização de um plano ou uma viagem pós-aposentadoria. Portanto, destacamos que do ponto de vista da psicologia fenomenológica o mais relevante e central é a descrição do sentido da relação, mesmo que essa seja psicologicamente contextualizada no momento do ciclo de vida familiar ou segundo o rearranjo das funções de um sistema. A morte de um pai provedor, porém, repressor, pode produzir sentimentos ambíguos como culpa, alívio e sobrecarga pelas exigências familiares que repousam sobre um jovem filho que se vê responsável por seus irmãos mais novos.

A literatura psicológica, portanto, por tratar da singularidade, apresenta elementos que não são estranhos a uma análise fenomenológica no contexto clínico: as variações da vivência do luto são influenciadas pela qualidade do vínculo entre o morto e o enlutado, assim como as especificidades da relação dos que estão envolvidos. Entretanto, do ponto de vista fenomenológico enquanto olhar compreensivo e descritivo não é possível manter-se apenas no nível de análise da singularidade.

Para alcançar uma descrição das vivências é preciso encontrar uma conexão entre a singularidade, o campo original da percepção de cada um e o mundo da correlação recíproca. "Noutros termos, cada um de nós tem o seu mundo da vida, visado como o mundo de todos" (Husserl, 1954/2008, p. 266). É preciso incluir à existên-cia, aos juízos e às experiências, a historicidade. Portanto, passaremos agora à reflexão sobre o horizonte histórico e as especificidades da cultura brasileira nas concepções sobre a morte e luto cumprindo uma redução, um passo metódico. O luto pode, como toda e qualquer experiência, ser tematizado na sua particularidade e no horizonte de sua historicidade. Toda ruptura vivida em uma experiência de coexistência ocorre articulada ao contexto específico ou psicológico da relação. Passemos então à compreensão do horizonte histórico.

 

Luto e fenomenologia: uma proposta compreensiva

Joanneliese de Lucas Freitas

Mestre em Psicologia do Desenvolvimento e Doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de Brasília (UnB). Professora Adjunta e Vice-Coordenadora do Laboratório de Fenomenologia e Subjetividade (LabFeno) da Universidade Federal do Paraná. Endereço Institucional: Departamento de Psicologia. Universidade Federal do Paraná. Praça Santos Andrade, 50 - Sala 215 (Ala Alfredo Buffren). 80020.300. Curitiba/PR. Email: joanne@globo.com

 

 

RESUMO

O luto é compreendido pela literatura psicológica como uma reação frente a perdas significativas. Do ponto de vista existencial pode ser compreendido como uma vivência típica em situações de transformação abrupta nas formas de se dar do ser em uma relação eu-tu. O presente texto tem como objetivo apresentar uma compreensão descritiva de tais processos. Inicia-se com uma descrição de seu aspecto particular e possibilidades de interpretações psicológicas. Ao colocar a singularidade entre parênteses busca-se uma breve descrição do horizonte histórico de presentação da morte na atualidade e seus modos de aparição. Por fim, ao reduzir o histórico, apresenta-se uma descrição do luto como vivência que emerge de uma mudança abrupta em uma relação eu-tu com a supressão da corporeidade do tu. Uma vez que fenomenologicamente a subjetividade é revelada enquanto intersubjetividade, conclui-se que a ruptura de uma relação é, portanto, a ruptura de uma abertura ao e do mundo e de formas de ser-no-mundo do enlutado. O luto é, deste modo, uma vivência que aparece com uma forte exigência de ressignificação do mundo-da-vida, onde o que é perdido pelo enlutado não é apenas um ente querido, mas também formas próprias de ser-no-mundo.
 

Introdução

Atualmente há divergências significativas no modo de se compreender o luto. O tema volta ao centro das discussões sobre saúde mental no bojo da elaboração do novo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM). No DSM, 4ª edição (DSM-IV-TR), o luto (V62.82) é apresentado como uma condição clínica que pode demandar auxílio profissional para alívio de sintomas associados. Suas manifestações aproximam-se daquelas de um Episódio Depressivo Maior e são consideradas "normais" mesmo quando se perpetuam por um período maior que dois meses (American Psychiatric Association, 2003). Ao que tudo indica, na próxima edição do DSM (DSM-V), o luto poderá ser catalogado não mais como um período natural e passageiro e sim como uma vivência patológica, dentro de determinadas condições e com limites de tempo rígidos para seu diagnóstico (duração de sintomas severos por mais de seis meses) (Kamens, 2010; Pies e Zisook, 2010). Tais diferenças na apreensão do fenômeno apresentam consequências diretas no seu enfrentamento, o que torna estudos mais aprofundados sobre esse tema de vital relevância.

O luto vivido em decorrência da morte de um ente querido não é somente uma experiência dura e profunda de perda, mas também a evocação de nossa condição mortal, assim como da inevitabilidade e irreversibilidade da morte. Seus aspectos ontológicos podem tornar seu enfrentamento mais árduo, além de se apresentarem como situações potencialmente reveladoras de conflitos anteriormente já vividos na história do enlutado que encontram no processo de luto espaço para (re)significação.

É cada vez mais perceptível o quanto o mundo ocidental evita a angústia e busca a neutralização do desconforto e da dor psíquica (Elias, 2001; Ariès, 2003). Os contextos de hiper-medicalização e de discrição emocional presentes em nossa cultura contemporânea são dois fatores relevantes na compreensão da vivência do luto (Kouri, 2005, 2010). A negação do luto ocorre por meio de práticas sociais tais como, por exemplo, a imposição da volta ao trabalho após sete dias, como se houvesse um período pré-determinado para a passagem por esse processo. Em nossa sociedade são inúmeros os exemplos de práticas que apontam para o esvaziamento de reflexões sobre o findar-se, sobre a aceitação do fim do outro e de si mesmo.

Questões existenciais como a transitoriedade da vida, a efemeridade, a angústia, inerentes ao processo da morte e do morrer, são frequentemente evitadas. Paradoxalmente, os meios de comunicação apresentam a morte como um espetáculo fantástico, pasteurizado e desvinculado das existências individuais (Kovács, 2008). É o freak show da atualidade. A efemeridade da existência e sua marca fundamental, a angústia, são deslocadas da experiência vivida para o silêncio do tabu ou para o espetáculo do bizarro, como se sua ocorrência fosse um acidente estranho e evitável. Essa é a morte interdita, aquela percebida na atualidade como fracasso (Ariès, 2003; Kouri, 2010). Esquecemos que à medida que avançamos no tempo, somos pelo próprio tempo, chamados ao risco e às escolhas inerentes à precariedade do existir. Pensar sobre a morte e enunciá-la fora das esferas do tabu ou da perversão coletiva dos jornais sensacionalistas, nos permitirá encarar sua verdade e sua presença irrefutável, bem como as questões que lhes são inerentes, quiçá, minimizando o sofrimento que aí está envolvido, ao trazê-la como reflexão cotidiana.

A morte não é apenas afastada da atmosfera social e do discurso acadêmico, mas também do cotidiano das famílias e seus moribundos - que nos dias atuais, morrem nos hospitais, privados de maiores informações e possibilidades de decisão a respeito de sua própria vida, sem autonomia, pois, segundo Ariès (2003) a morte transformou-se em um fenômeno técnico, mera consequência da suspensão dos cuidados médico-hospitalares. Depois da morte de um parente, a sociedade que trata a morte como tabu exige da família enlutada o máximo de discrição (Freitas, 2009; Kouri, 2010), a modernidade não tolera o sofrimento, sempre associado à baixa produtividade e a falta de capacidade para lidar com seus sentimentos. Quanto aos enlutados, é preciso que lhes seja permitido viver e ressignificar a dor da perda, o que é violentamente vetado pela sociedade ocidental contemporânea, com baixa tolerância às expressões vinculadas à tristeza, frustração e perda.

No campo psicológico, Freud foi o primeiro a tecer apontamentos sobre o luto (Freud, 1917/2010). O luto é, segundo o autor, uma vivência normal, específica diante da perda significativa de um objeto. Tais vivências estão conscientes e implicam em um empobrecimento do mundo desde a falta de seu objeto de investimento. Seus sintomas seriam os mesmos da melancolia, com exceção da autoestima que não se encontraria perturbada (Freud, 1917/2010). A melancolia assinalaria um esvaziamento do ego, enquanto o luto, do mundo. Tanto o luto quanto a melancolia se caracterizariam por um profundo desânimo com perda do interesse pelo mundo externo, inibição da atividade em geral e incapacidade de amar, ou de substituição do objeto idealizado. Para o autor, haveria apenas dois destinos frente à perda: a elaboração bem sucedida ou a melancolia (Mendlowicz, 2000). Segundo Freud (1917/2010) a elaboração seria a possibilidade de (re)investimento libidinal em um novo objeto, ao desinvestir-se do anterior, supera-se sua perda. No decorrer da história do campo "psi" percebe-se uma proliferação e muitos avanços nos modos de compreensão dessa experiência, pois mesmo entre psicanalistas as conclusões de Freud são hoje questionadas, especialmente o fato de que a não elaboração do luto se destinaria sempre à melancolia (Mendlowicz, 2000).

Atualmente tende-se a compreender o luto como uma vivência imprevisível, inevitável e desconexa dos demais estágios vivenciados anteriormente no ciclo vital (Parkes, 1998). Segundo Kovács (1992, p. 150) "a morte como perda nos fala em primeiro lugar de um vínculo que se rompe, de forma irreversível, sobretudo quando ocorre perda real e concreta". Para a autora, a vivência do luto e seu tempo são variáveis, sendo que em alguns casos, nunca termina, embora estes ocorram com menos frequência. Em seus estudos defende que não é possível generalizar esta experiência, pois ela depende das causas e circunstâncias da perda, bem como do vínculo com aquele que morreu. Destaca que não há diferenças significativas entre o luto de crianças, adolescentes e adultos e que o traço mais permanente no luto é um sentimento de solidão.

O luto é frequentemente reportado na literatura psicológica, portanto, sob o viés da teoria do Apego, como uma reação à perda (Kovács, 1992; Bromberg, 1996; Parkes, 1998). Do ponto de vista da psicologia fenomenológico-existencial não encontramos literatura específica sobre o luto o que nos leva ao nosso objetivo central do presente texto: refletir sobre o luto a partir do ponto de vista da psicologia fenomenológica, descrevendo os seus aspectos vivenciais. Existencialmente o luto é aqui descrito como uma vivência típica em situações de transformação e mudança abrupta nas formas de se dar do ser em uma relação eu-tu.

A relação eu-tu é aqui entendida a partir da noção de intersubjetividade em Merleau-Ponty (1945/1994; 1969/2002). Para o autor, a intersubjetividade é uma estrutura da vida intencional que me revela em situação. É na presença do outro que nos tornamos visíveis a nós mesmos, onde a intercorporeidade é a troca primeira. Sendo com o outro um campo relacional, a coexistência em um mesmo mundo funda, por meio da intercorporeidade, as relações e as experiências subjetivas. A intersubjetividade é, portanto, a articulação da experiência, tornado-a possível (Merleau-Ponty, 1945/1994; 1969/2002).

A seguir expomos uma breve descrição reflexiva sobrea experiência do luto desde um olhar da psicologia fenomenológica, bem como reflexões sobre suas implicações e possíveis repercussões na prática psicológica, ausentes até o momento na literatura desta perspectiva teórica. Buscamos descrever o luto por meio da apresentação de um modelo compreensivo, resultante da análise reflexiva de suas propriedades e relações típicas desta vivência (Embree, 2011).

 1. Eu Sem Tu: Uma Proposta Compreensiva da Vivência do Luto

Caracteriza-se como luto a vivência experienciada após uma situação de perda significativa. O sentido da perda é um elemento fundamental para a compreensão desta experiência, especialmente quando se trata de um ente querido. O sentido da relação também. Com a apresentação da ausência do outro no mundo do "eu", a experiência do luto surge como essa novidade carente de sentido que coloca em jogo as especificidades relacionais, o horizonte histórico e o mundo-da-vida do enlutado.